Tinha sido culpa do gato. Era sempre culpa do gato porque, na maioria das vezes, o sacana acertava. Habituara-se a isso e, das vezes em que tentou ignorar, tinha-se dado mal. Por isso, corresse bem ou mal, era culpa do gato.
Agora estava ali, no meio do bosque, à procura de alguma coisa, mas sem saber bem o quê. Nunca sabia ao que ia: o gato dava o sinal e ele seguia-o, até encontrar qualquer coisa. As pessoas chamavam-lhe herói, sem saberem que a culpa era do gato.
O que haveria agora para si? Uma senhora para salvar de um assalto? Um cartel de droga para desmantelar? Soube-o quando chegou junto do poço e ouviu aquele som tão familiar, mas tão desenquadrado naquele ambiente. Triiiim, triiim.
Lembrou-se de reformular uma questão que ouvira muitas vezes quando era criança: se um gato te disser para te atirares a um poço… atiras?
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G:
Ela de costas. Ele ali pousado, mesmo a jeito. Tão a jeito que metia nojo. Bastava um toque, tão pequeno que podia mesmo ser sem querer, que cairia para o fundo daquele poço. Podia sempre dizer que tinha sido o gato. Ela não saberia, que estava de costas. Tinha tanta vontade mas era tão errado. Metade do seu corpo dizia que não, a outra dizia que sim, e a sua mão, mais precisamente a ponta do seu dedo, estavam já a concordar.
Encostou a unha e fez um bocadinho de força. O telemóvel foi engolido pelo escuro do poço, em silêncio. Ela nem suspeitou. Perfeito. Teria agora a atenção dela, sem distrações. Ela iria olhá-lo nos olhos, sem os desviar de 20 em 20 segundos para aquele ecrã. Olhariam um para o outro como não acontecia há anos, pelo menos até ela se aperceber.
Ana odiava trovoada. Odiava. Investigava sempre o tempo no seu telefone antes de saber se ia precisar de companhia nessa noite. Porque, por alguma razão sádica, parece que só há trovoada à noite, não é?
Ela sabia que nesse dia ia precisar de alguém mas não sabia de quem. Ligou, ligou, ligou e ninguém podia. Teria de estar sozinha. O pai atendeu mas só lhe disse “Ana, filha, a trovoada é como os gatos. Se a olhares nos olhos, ela vai embora”. A Ana encheu-se de coragem e nessa noite não se escondeu nos lençóis. Olhou os relâmpagos nos olhos. E não é que eram bonitos? Continuou a querer saber sempre o tempo. Mas agora sem medo, apenas com saudades.
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R:
Nunca antes se havia cruzado com tal par de olhos. Já os vira grandes, amendoados, pretos que mal se distingue a iris, azul-céu, muito pequeninos, disfarçados por óculos. Afinal, ser oftalmologista é mesmo assim: passamos a vida a fazer aquilo de que a maioria das pessoas tem medo – olhar os outros nos olhos.
Mas olhos daqueles eram cá uma raridade. Quem diria, olhos que lançam relâmpagos. Nem nos livros de medicina havia registo de tal coisa. E ele sabia bem do que falava: desde o dia em que recebera aquele telefonema, mais não tinha feito do que investigar. Passou os livros da biblioteca a pente fino, falou com especialistas, viu o Dr. House em busca de caso semelhante. Nada.
Que raio de coisas tem alguém de ver para que lhe saiam relâmpagos dos olhos, afinal?
João – ou Super Trovão, como exigia ser chamado – passava tardes inteiras a combater o Mal com a ajuda de Relâmpago, o gato amarelo. Os pais estavam preocupados: já era altura de o rapaz se deixar daquelas coisas. Já tinha quinze anos e gastava os dias a perseguir vilões imaginários e a impedir catástrofes que só existiam na sua cabeça.
BANG! POW! CATCHINGA! Era isto a toda a hora.
Um dia, os pais decidiram levá-lo a um psicólogo. Ai Doutor, que ele acredita que é um super-herói e ai de quem o convença do contrário. E deitavam as mãos à cabeça: o que vai ser dele, que para o ano começa a escola secundária e o único amigo que tem é um gato vadio…
O médico pediu que chamassem o rapaz, não por João, mas pelo seu nome preferido.
Menino Super Trovão, é a sua vez.
Ele entrou. Conversaram durante horas. Mandaram entrar os pais.
Então, shôtor, não há cura, pois não? Temos o nosso menino perdido para sempre, não é?
O que é que preferiam? Que o vosso filho passasse os dias agarrado a um telemóvel como os outros adolescentes? O diagnóstico é simples: o vosso filho sofre de excesso de imaginação.
Ai, que horror, que isso parece grave, disse a mãe, já que o pai tinha só ficado de olhos muito abertos. E tem cura?
Tem. É deixá-lo viver.
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G:
Foi aquela chamada para a Carla. Puta da Carla. E foi o jogo de candy crush. BANG! Porque raio é que comecei a jogar aquela porcaria? BANG! E o scroll no Instagram. Horas e horas a ver fotos de outras gajas em bikini para quê?
BANG! – a porta começava a ranger. Quem me manda estar sempre agarrada ao telemóvel? BANG! A culpa é minha se chego a esta hora do dia sem bateria. A culpa é minha se agora não tenho maneira de ligar para a polícia, para quem quer que seja. BANG! BANG! – a porta soltou-se de uma das dobradiças.
Vou morrer. E a culpa é de quem faz a merda dos telemóveis terem pouca bateria. BANG! A culpa é do Instagram. BANG! Do candy crush. BANG! E da Carla. BANG! Puta da