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Dados que contam histórias

Dados que contam histórias

(#18) Ponto de interrogação, código, suspeitos

por Guilherme Fonseca, em 08.02.16

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R:

Alfredo Bala sentou-se com dificuldade na cadeira.

Já te decidiste a colaborar?

Silêncio.

Sabes que enquanto não nos disseres onde puseste o papel, não vais sair daqui.

Qual papel?

Não te faças de desentendido. Tens noção de que nos basta um estalar de dedo para incriminar os teus filhos, não tens? Fazemos deles suspeitos de qualquer coisa e depois, nem que te safes, não vais ter ninguém lá fora à tua espera.

Silêncio. Mais silêncio.

Minutos de tanto silêncio.

Afinal o que tem esse papel que vocês tanto querem?

Ouve, Alfredo, estou a perder a paciência contigo. Dá-nos o papel com a puta do código ou eu lixo-te a vida.

Alfredo respondeu com um braço de ferro silencioso. Não queria que o mandassem para dentro novamente. Doía-lhe demasiado o rabo para se conseguir levantar, mas um homem tem de fazer o que for preciso para proteger o que é seu. 

 
∞∞∞
 
G:

“Ela vai começar a suspeitar” pensou. Estavam naquilo há imenso tempo. O empregado continuava de Multibanco estendido, ele a esfregar a testa, ela a sorrir. “De certeza que não posso oferecer eu?”. “Não, eu é que troquei de cartão há pouco tempo, desculpa…”. Mentira. O cartão era o mesmo há meses. Ele é que estava nervoso de estar a jantar com a mulher mais bonita que já tinha visto. E os nervos deram-lhe para isso, para se esquecer do pin.

“Vamos tentar mais uma vez?” disse o empregado. “Lá terá de ser” disse ele. Carregou 1. Carregou 7. Depois 4. Depois 5. A máquina começou a pensar. Sentiu um pingo de suor a escorrer-lhe pela testa. Ela continuava a sorrir. De repente a geringonça fez um barulho e começou a cuspir um papel. Soltou um suspiro de alívio e disse “Bom, ao menos estava-me a esquecer do pin e não do teu nome, Rebeca.” Ele riu-se. Ela não, pegou no casaco, levantou-se e saiu do restaurante. Da sua boca só saiu um “era uma piada”. O empregado tirou o cartão, rasgou o talão e respondeu “eu percebi”.

(#13) Livro, torre, ponto de interrogação

por Rita da Nova, em 29.01.16

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G:

Leu. Leu. E voltou a ler. Os gregos, os russos, até os estranhos. Leu tantos livros e não encontrou a chave da porta em lado nenhum. Nunca imaginaria que ao morrer fosse para aquele tipo de inferno. Uma torre, cheia de livros, de porta trancada. Estava preso, para sempre, numa torre de livros. E não conseguia sair.

Achou que se os lesse a todos a porta abriria. Mas não. Leu todos, metros e metros de altura deles, várias vezes, e nada. A porta estava trancada e assim iria ficar. Era como aquele, que já tinha lido umas 20 vezes, da rapariga dos cabelos compridos que o príncipe trepa. Mas aqui não havia príncipe e muito menos cabelos compridos. Estava careca de saber as histórias daqueles livros todos, era evidente que o seu final iria ser o de ficar ali. Ao menos que alguém a soubesse. Pegou numa pena e começou a escrever. Ou melhor, a escrever-se. E uma torre fechada, cheia de livros, que tinha sido sempre um inferno, tornou-se finalmente num paraíso.

 

∞∞∞

 

R:

Vives aí no alto dessa tua torre, como se soubesses tudo. Sabes que é preciso aprender? Que os livros fazem falta? Que te fazem questionar o mundo? 

Era sempre assim. Beatriz era chamada à sala do director de turma porque andava de miolos nas nuvens, a esvoaçar, e esquecia-se do que era realmente importante. Ou do que eles achavam que era realmente importante.  

Beatriz chegava a casa, mostrava o recado à mãe, levava um raspanete ficava de castigo. Mandavam-na alimentar as galinhas e pentear os cavalos, como penitência. 

Sabes, Pintada, dizia ela à sua galinha preferida, estou farta de me portar mal, mas se não o fizer não tenho desculpa para vir brincar convosco… 

(#8) Ponto de interrogação, bicicleta, elefante

por Guilherme Fonseca, em 19.01.16

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R:

Mas o que é que te preocupa tanto? Alguma vez vai ter de ser.

Bem sei, mas olha… é como o momento em que tens de tirar as rodinhas de apoio da bicicleta. Nunca sabes bem como e quando o fazer. E se for cedo e arriscares uma esfoladela no joelho? E se for tarde demais para as largar? Tira-se primeiro uma e só depois outra? Ou as duas ao mesmo tempo e seja o que Deus quiser?

Acho que estás a dramatizar. Pareces um elefante em pânico porque tem um rato à frente.

Tens muita graça. O que é que eu faço? Como é que eu deixei as rodinhas quando era pequeno, afinal?

Acho que foi uma de cada vez. Ou, se calhar, isso foi a tua irmã, não me lembro muito bem. Mas olha, uma coisa te prometo.

O quê?

Que mantenho a minha mão nas tuas costas enquanto precisares de mim.

 
∞∞∞
 
G:

Como assim não há uma para mim?

O João estava cada vez mais irritado. Tinha quase a certeza que comprara a bicicleta dele ali… mas não se lembrava.

Diga-me lá que modelos é que tem?” perguntou em desespero. De cidade, de montanha, de corrida, de acrobacias. Havia de tudo mas nada para ele. “Desculpe mas para alguém assim, não temos mesmo nada.” O João não queria ouvir mais. Ele sabia que havia bicicletas para ele. Que raio, ele tinha uma! Só não sabia onde a tinha deixado. Raio da sua memória. 

 

 

(#2) Mão/luva, pasta, ponto de interrogação

por Guilherme Fonseca, em 07.01.16

 

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R:

Francisco vivia fascinado com aquele homem. Fazia-lhe lembrar a girafa que tinha visto no Jardim Zoológico: muito alto, pescoço longo, de andar cuidadoso, quase como se os pés examinassem o mundo antes de decidirem avançar. Trazia sempre uma mala de couro na mão esquerda e uma luva apenas na mão direita.

Um dia, o rapaz encheu-se de coragem:

Posso fazer-lhe uma pergunta?

Já não fizeste?

Porque é que traz só uma luva? Não tem frio na outra mão?

E quem te diz que a outra mão é verdadeira?

 

∞∞∞

 

G:

37 anos. 37 anos de carreira - 9 deles de estudo - que iam pelo cano abaixo. Tinha acabado de cometer um disparate enorme mas como médico sabia que às vezes é um disparate que salva uma vida. Uma vida mas não uma carreira. Essa ia acabar. O director do Hospital estava parado à sua frente, ele, uma luva e um ultimato. “Então? Operaste ou não operaste sem a outra luva? Tu sabes que isso é contra as regras do hospital!”. Sim, tinha operado só com uma luva mas ninguém sabia. Só a enfermeira que o acompanhou na cirurgia, e que no final lhe deu a pasta dizendo “não se preocupe”.

Sem resposta o director do hospital era forçado a investigar. Empurrou-o para dentro da sala de cirurgia e disse “ou está uma luva aqui dentro ou podes ir lavar carros”. 37 anos de carreira que iam desaparecer ali, naquele instante. E por alguma razão, não lhe saia a frase da enfermeira da cabeça. “Não se preocupe”. Não me preocupo porquê?

O director remexia no lixo gritando “estás feito!” quando lhe respondeu “não se curve que isso dá-lhe cabo das costas, sr director”. O director ergueu a cabeça e viu o médico com outra luva na mão. “Tem de começar a confiar mais na sua equipa. A mim ajuda-me imenso”.

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