(#30) Flor, documentos, cofre
Todos sabiam que ela não era boa da cabeça, mas foi preciso esperarem até à sua morte para terem real noção da sua loucura.
O testamento era incompreensível. O que raio era o tesouro, em que cofre estava guardado e, mais importante que isso, como se abria?
Aposto que são documentos importantes, dizia a Tia Ofélia, que mandava sempre a sua laracha em alturas destas (e nunca acertava). Houve quem achasse que fosse dinheiro e jóias, remédios que tirariam toda a família da miséria. Aquela egoísta, diria a tia Ofélia.
Encontraram o cofre numa parede falsa, no quarto em que tinha dormido toda a sua vida. E estava aberto. Aberto para que as flores pudessem respirar. Só aí perceberam porque é que ela tinha pedido que não lhe deixassem morrer o tesouro.
“Fugidia” era o que todos lhe chamavam. “Insatisfeita” era o que achavam que era. Mas ninguém a conhecia para saber porquê. Mais uma segunda-feira, mais um primeiro dia num emprego. Sentou-se na sua nova cadeira, ajeitou os documentos na sua mesa e pousou o vaso com a flor à sua frente.
Era o seu primeiro dia naquele banco. Iria entrar e sair daquele cofre, como tinha entrado e saído de cozinhas, salas de aula, salas de operação ou salas de reunião. As pessoas chamavam-lhe de tudo, ao verem o seu currículo aumentar com empregos e mais empregos. Patrões imploravam-lhe que ficasse, colegas choravam que não fosse, o que ninguém sabia é que quem ditava o tempo que ali ficaria, era a flor. Para ela, um emprego era como aquele ser: florescia o máximo possível até ser tempo de mudar de canteiro.