Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Dados que contam histórias

Dados que contam histórias

(#29) Elefante, árvore, algemas

por Rita da Nova, em 30.03.16

dados-29.JPG

 

 

G:

São 50? Ou 60? Tinha lido algures quantos dias uma pessoa aguentava sem comer mas já não se lembrava. Ainda bem. Melhor assim. Não ia largar aquela árvore por nada, nem por fome, apenas por justiça.

Quando uma pessoa se acorrenta a um pinheiro antigo porque o querem mandar abaixo ou se invade uma clínica porque testam produtos em animais, não o fazemos por nós, fazemo-lo pelos coelhos com champô nos olhos ou pelos elefantes a quem arrancam o marfim. Podiam ser 2 ou 100 dias que aguentaria sem comer. Não interessava. Para algumas pessoas, o que somos é muito mais do que aquilo que comemos.

 

∞∞∞

 

R:

José mal podia acreditar que era verdade. Piscou os olhos várias vezes, esfregou-as outras quantas. Ia, finalmente, ao circo. Já todos os colegas da escola tinham ido pelo menos uma vez, mas a mãe de José dissera que ele tinha de esperar até perceber bem as coisas. O que havia para perceber? Já tinha visto na televisão, no Natal, e tinha percebido tudo.

Agora que tinha a tenda ali, em frente a si, o coração começou a bater de felicidade, ao ritmo das palmas que ouviria dentro de minutos, quando entrasse no recinto e os palhaços tomassem o palco.

Podemos comprar pipocas?

Daqui a bocado, respondeu a mãe, enquanto segurava a sua mão com mais força e o desviava do caminho.

Vamos entrar por outro lado, mãe?

Não teve resposta.

José mal podia acreditar que era verdade. Piscou os olhos várias vezes, esfregou-as outras quantas. À sua frente, preso a uma árvore com algemas gigantes, estava um elefante. Um elefante a sério. Apertou a mão da mãe e olhou-a.

É isto que eles fazem aos animais no circo, José. Prendem-nos para eles não fugirem e batem-lhes para que se acalmem. Posto isto, ainda queres pipocas?

 

(#28) Telemóvel, gato, poço

por Guilherme Fonseca, em 16.03.16

dados-28.JPG

 

 

R:

Tinha sido culpa do gato. Era sempre culpa do gato porque, na maioria das vezes, o sacana acertava. Habituara-se a isso e, das vezes em que tentou ignorar, tinha-se dado mal. Por isso, corresse bem ou mal, era culpa do gato. 

Agora estava ali, no meio do bosque, à procura de alguma coisa, mas sem saber bem o quê. Nunca sabia ao que ia: o gato dava o sinal e ele seguia-o, até encontrar qualquer coisa. As pessoas chamavam-lhe herói, sem saberem que a culpa era do gato. 

O que haveria agora para si? Uma senhora para salvar de um assalto? Um cartel de droga para desmantelar? Soube-o quando chegou junto do poço e ouviu aquele som tão familiar, mas tão desenquadrado naquele ambiente. Triiiim, triiim. 

Lembrou-se de reformular uma questão que ouvira muitas vezes quando era criança: se um gato te disser para te atirares a um poço… atiras?

 
∞∞∞
 
G:

Ela de costas. Ele ali pousado, mesmo a jeito. Tão a jeito que metia nojo. Bastava um toque, tão pequeno que podia mesmo ser sem querer, que cairia para o fundo daquele poço. Podia sempre dizer que tinha sido o gato. Ela não saberia, que estava de costas. Tinha tanta vontade mas era tão errado. Metade do seu corpo dizia que não, a outra dizia que sim, e a sua mão, mais precisamente a ponta do seu dedo, estavam já a concordar.

Encostou a unha e fez um bocadinho de força. O telemóvel foi engolido pelo escuro do poço, em silêncio. Ela nem suspeitou. Perfeito. Teria agora a atenção dela, sem distrações. Ela iria olhá-lo nos olhos, sem os desviar de 20 em 20 segundos para aquele ecrã. Olhariam um para o outro como não acontecia há anos, pelo menos até ela se aperceber. 

(#27) Prato, triste, espelho

por Rita da Nova, em 14.03.16

dados-27.JPG

 

 

G:

Será que me podia dar uma pequena ajuda?

Mais uma vez perguntava, mais uma vez o ignoravam, ali sentado no seu canto, no seu pedaço de cartão. Havia quem o ouvisse a falar mas não ouvisse o que dizia. Viam-no ali sentado à entrada da estação de comboios, de mão estendida, e davam-lhe dinheiro ou comida. Uma vez até lhe deram um pão num prato, mesmo. Era de plástico mas era um prato à mesma. Ouvirem o que dizia é que ninguém fazia. Até que aquela mulher passou, puxando a sua mala cor de rosa.

Será que me podia dar uma pequena ajuda? A bela senhora parou e fitou-o. Claro. O sem abrigo perguntou - A senhora por acaso tem um espelho?. Ela respondeu-lhe - Sim, mas é pequenino - remexendo na mala. Estendo-o, o homem pegou nele e riu-se pela primeira vez em anos. Não faz mal, serve perfeitamente.

 

∞∞∞

 

R:

Alcina não conseguia controlar nenhuma das coisas. Por um lado, não sabia viver sem cozinhar. Há pessoas que nascem para determinada coisa e, mesmo que tentem fugir, vão sempre lá dar. Como Alcina.

Mas, por outro lado, não conseguia deixar de afectar os outros com os seus pratos. E não julgue o eleitor (ou o ouvinte, depende de como esta história for contada), que era uma forma de afectar normal. Não era só um "este prato fez-me o dia" ou "nunca comi coisa tão má na vida".

Alcina transformava os sentimentos daqueles que comiam os seus cozinhados. Porque aquilo que preparava transformava-se num espelho do que se passava dentro de si. Se estava triste, fazia as pessoas chorar. Se estava feliz, as pessoas dançavam energicamente enquanto comiam.

Alcina não conquistava ninguém pelo estômago. Tomava-lhes a alma e cozinhava-a a seu gosto.

 

(#26) Café, chave, triste

por Guilherme Fonseca, em 03.03.16

dados-26.JPG

 

 

R:

Isso é triste, disse-lhe o amigo. 

É que é mesmo essa a palavra: triste. É como ter todo o dinheiro do mundo e nada em que o gastar. 

Ou uma chave sem nada para abrir, acrescentou o outro. 

Tu hoje estás a acertar todas, o que é que te puseram no café?

Agora a sério, continuou o amigo. Aquilo que tu estás a ver como sendo um problema, talvez não seja tão mau assim. 

Olha que eu acho que é. Preferia não ter nada, estar vazio, ser apenas um pedaço de carne andante, cujo único objectivo é o de ir vivendo. 

Ou o de não morrer. 

É o que eu digo, estás inspirado. 

Oh meu amigo, é bem melhor do que estar como tu: apaixonado e sem ninguém para amar. 

 
∞∞∞
 
G:

Não estava lá. Já sabia que era dia não. Quando aquele pedacinho de metal dentado não estava pousado na mesa da entrada, era porque ele estava em dia não e tinha ido sair. Era pior que o euromilhões, acertar como é que ele ia estar. Apaixonado, zangado, feliz, triste, amuado, as hipóteses eram muitas mas se a chave não estava ali, a solução era só uma: ele tinha saído. Dar uma volta, como sempre fazia quando acordava com “o rabo virado para a lua” como dizia a sua mãe.

Iria fazer o costume. Arrumar a roupa lavada, preparar os almoços do dia seguinte e sentar-se a beber um café. Era nessa altura que ele chegava, lhe dava um beijo na testa e iam dormir. Mas naquele dia não. Arrumou a roupa, preparou os almoços, bebeu um café. E outro. E outro. E outro. Tomou cafés o resto da vida sem que ele voltasse para lhe dar o beijo na testa. 

Mais sobre mim

Arquivo

  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D