(#2) Mão/luva, pasta, ponto de interrogação
R:
Francisco vivia fascinado com aquele homem. Fazia-lhe lembrar a girafa que tinha visto no Jardim Zoológico: muito alto, pescoço longo, de andar cuidadoso, quase como se os pés examinassem o mundo antes de decidirem avançar. Trazia sempre uma mala de couro na mão esquerda e uma luva apenas na mão direita.
Um dia, o rapaz encheu-se de coragem:
Posso fazer-lhe uma pergunta?
Já não fizeste?
Porque é que traz só uma luva? Não tem frio na outra mão?
E quem te diz que a outra mão é verdadeira?
∞∞∞
G:
37 anos. 37 anos de carreira - 9 deles de estudo - que iam pelo cano abaixo. Tinha acabado de cometer um disparate enorme mas como médico sabia que às vezes é um disparate que salva uma vida. Uma vida mas não uma carreira. Essa ia acabar. O director do Hospital estava parado à sua frente, ele, uma luva e um ultimato. “Então? Operaste ou não operaste sem a outra luva? Tu sabes que isso é contra as regras do hospital!”. Sim, tinha operado só com uma luva mas ninguém sabia. Só a enfermeira que o acompanhou na cirurgia, e que no final lhe deu a pasta dizendo “não se preocupe”.
Sem resposta o director do hospital era forçado a investigar. Empurrou-o para dentro da sala de cirurgia e disse “ou está uma luva aqui dentro ou podes ir lavar carros”. 37 anos de carreira que iam desaparecer ali, naquele instante. E por alguma razão, não lhe saia a frase da enfermeira da cabeça. “Não se preocupe”. Não me preocupo porquê?
O director remexia no lixo gritando “estás feito!” quando lhe respondeu “não se curve que isso dá-lhe cabo das costas, sr director”. O director ergueu a cabeça e viu o médico com outra luva na mão. “Tem de começar a confiar mais na sua equipa. A mim ajuda-me imenso”.